MÚSICA & LITERATURA, NOSSOS DOIS HORIZONTES

Ao final do século XIX muitos falaram dos graus de eficiência da linguagem e identificaram nas palavras alguma qualidade musical. Com efeito, o fundamento essencial da expressão lingüística é o ritmo. E para a música o ritmo é o fundamento da organização do tempo, é uma de suas características básicas, como também a melodia, a harmonia e o timbre.
E, como asseveram nossos expoentes modernistas, o que há de mais importante nas artes da palavra escrita e cantada é a “aproximação, a comunhão que elas estabelecem entre os seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso”. Somos até contemporâneos de Machado e de Castro Alves, de Carlos Gomes e Villa-Lobos. Somos, como diz Drummond, amigos pessoais deles.
E foi por essa comunhão que o maestro JOÃO OMAR DE CARVALHO MELLO reuniu a literalista LANA SHEILA ROCHA, o historiador ELTON BECKER e o violonista PETRÔNIO JOABE para juntos arregimentarem esforços e alma para o projeto “MÚSICA & LITERATURA”, um empreendimento que envolve a realização de concertos temáticos, em geral identificados com a leitura de excertos de algum livro.
Com isso, o projeto MÚSICA & LITERATURA recorre ao ambiente da renascença onde escutar/ ler era uma prática freqüente. Tanto que o historiador Philippe Ariès acredita que o avanço da alfabetização, o saber ler e escrever, e a maior circulação da palavra escrita, isto é, a sua oralização, foram transformações decisivas no Ocidente na Época das Luzes. E outro historiador, Roger Chartier, seguindo essa hipótese, nos mostra que entre os séculos XVI e XVIII a leitura em voz alta era um dos principais elementos de sociabilidade. De tal modo que o oralizador ou o lector deveria saber “mobilizar mil artes y modos de ler a fim de prender a atenção dos que escutam” a palavra escrita. Chartier lembra ainda que o próprio Cervantes no “D. Quixote” fala de um grupo de ouvintes reunidos espontaneamente para ouvirem em voz alta uma leitura “Que trata do que verá quem o ler ou do que ouvirá quem o escuta ler” (Quixote, LXVI).
Dessa forma, o maestro com seus amigos passeiam pelas possibilidades expressivas da literatura, da música erudita e da música popular, e, como resultado de tudo isso, propõem uma empresa singular que alia o ler ao escutar, mas também ao ver, pois os concertos são iluminados por registros imagéticos relacionados a cada temática, como se verá.
Enfim, o projeto MÚSICA & LITERATURA faz parte do esforço de reconhecimento da nossa memória musical e literária, memória sobre a qual diversos intelectuais seriamente comprometidos com a história do nosso país já se debruçaram. Afinal, história e memória, música e literatura revelam as identidades de um povo, e relacioná-las é uma proeza que requer muita alma e concisão. Todavia, aqui esses tais aspectos facilmente se explicam: dois horizontes fecham estas nossas quatro vidas. Finalmente, MÚSICA & LITERATURA não é um projeto, antes um objetivo nosso de vida, conforme a pressão do sentimento e da sensação de viver, pois todas as artes vicejam a maior de todas elas: a arte de viver.

Elton Becker

L´OUVERTURE, A ARTE

A arte tem um papel essencial na criação em qualquer esfera. A arte é uma porta aberta para as experiências. E há algo interessante no exercício da arte: o indivíduo não precisa dominar notação musical para entender música, não precisa dominar cinematografia para apreciar cinema. É alguma coisa mágica. Todos nós sabemos o que é arte sem nunca termos feito uma única pintura, poesia ou música, ou mesmo sem termos teorizado sobre ela.
A arte não é espelho, não é reflexo do real, da verdade ou da vida, mas inscrição, criação, realidade. Ela pode funcionar como um bálsamo à vida ou um cartucho de dinamite, tanto pode acalmar paixões como incendiá-las. Indo além, acreditamos que a arte pode realizar utopias e talvez seja a forma mais feliz de fazer recuar a violência. A arte afirma a vontade da criação (Eros) sobrepondo-se ao instinto de morte (Tanatos).
Não existe um único significado para a arte. Uma pintura, uma música ou um poema podem significar coisas diferentes para épocas diferentes, para expectadores diferentes, e todas essas coisas podem ou não alcançar o que o autor perseguiu. Arte é essencialmente prazer, satisfação, plenitude humana. Sentir prazer desinteressadamente talvez seja uma das melhores características do ser humano, embora seja a arte a única capaz de tornar real o mais fantástico impulso de viver, que é não ser totalmente apagado pela morte, como assevera Eça de Queirós no “Prefácio dos Azulejos do Conde de Arnoso”:

Só a arte realmente pode dizer aos seus eleitos, com firmeza e certeza: - «Tu não morrerás inteiramente: e mesmo amortalhado, metido entre as tábuas de um caixão, regado de água benta, tu poderás continuar por mim a viver. O teu pensamento, manifestação melhor e mais completa da tua vida, permanecerá intacto, sem que contra ele prevaleçam todos os vermes da terra; e ainda que, fixado definitivamente na tua obra, pareça imobilizado nela como uma múmia nas suas ligaduras, ele terá todavia o supremo sintoma da vida, a renovação e o movimento, porque fará vibrar outros pensamentos e através das criações deles estará perpetuamente criando.